Afinal, como podemos ser antirracistas no contexto escolar?
Maria Aparecida Gomes Ferreira
A célebre afirmação de Ângela Davis, “Numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, nos últimos anos, viralizou nas redes sociais e nos discursos das pessoas. No entanto, ao perguntar aos colegas professores e aos estudantes, o que significa “ser antirracista”, recebo respostas hesitantes ou tautológicas, do tipo “ser antirracista é não ser racista”. Essa resposta parece não ajudar muito, especialmente porque, a despeito das pesquisas apontarem que nossa sociedade é racista, nenhum indivíduo se admite sendo racista. Daí, essa frase pode ser esvaziada do seu potencial e significado se não refletirmos sobre o que realmente significa ser antirracista e sobre as estruturas racializadas nas diversas situações e instituições sociais em que vivemos.
Um exemplo disso remete ao ano de 2001, quando eu estava cumprindo carga horária de prática de ensino em licenciatura em inglês, em uma escola pública da zona sul do Rio de Janeiro. A professora regente das turmas em que eu coparticipava era uma mulher branca que apresentava reflexões sobre um documentário chamado “Olhos Azuis”, da professora Jane Elliot, criticando a supremacia racial branca na grade curricular. Esse documentário, que pode ser encontrado no Youtube, não chega a usar esses conceitos, mas aponta como os conhecimentos apresentados no processo de escolarização são marcados pela perspectiva, valores e protagonismos brancos.
Até aquela ocasião da licenciatura, eu ainda não tinha tido a chance de refletir sobre a supremacia racial branca, justamente porque a totalidade de referências, materiais e textos lidos e estudados eram branco-centrados. Mas fiquei incomodada com aquela reflexão e percebia que esse incômodo fazia parte do reconhecimento de que o currículo acadêmico e escolar tinha uma estrutura racista. Todavia, eu não sabia como sair desse labirinto incômodo, já que as fontes estudadas até então eram majoritariamente estadunidenses e europeias que se restringiam a denunciar o racismo, mas não apontavam caminhos.
Quase 20 anos mais tarde, em 2020, em meio à pandemia de Covid-19 e ensino mediado por tecnologias, comecei a encontrar caminhos possíveis. Nessa ocasião, eu trabalhava em uma escola federal pública e com alunos do ensino médio (IFRJ campus Arraial do Cabo) e tinha passado os últimos 4 anos lendo e estudando referências negras como Katiuscia Ribeiro, Barbara Carine Soares Pinheiro, Kananda Eller Souza da Paixão, Nina da Hora, Luane Bento Santos, Cida Bento, Aparecida de Jesus Ferreira. Com essas novas referências acadêmicas, consegui imaginar aulas de inglês, para turmas do ensino médio técnico em Informática, com base em referências afrocentradas.
Inicialmente, era intrigante observar o desconforto das turmas com essa perspectiva adotada. Houve uma turma, inclusive, em que escutei o seguinte comentário em uma aula “ih, agora só tem preto!”. Nesse dia, continuei minha reflexão e, ao final, lembrei as várias personalidades brancas normalmente estudadas e perguntei por que ninguém indagava quando “só tinha gente branca”. Os estudantes (e a sociedade em geral) não estão acostumados a questionar o lugar ideologicamente hegemônico da branquitude. E como aprendi com Cida Bento, esse silêncio, hesitação ou não questionamento é um exemplo clássico do pacto narcísico da branquitude, que também ocorre no contexto escolar.
Falar de representatividade dos corpos e identidades minoritárias em sala de aula é importante. Mas, no caso racial, continua sendo insuficiente se as referências, os valores, a cultura e os exemplos estudados continuam sendo exclusivamente os brancos. bell hooks, em um de seus textos, fala sobre isso quando lembra a aflição e sofrimento vividos durante o processo de integração escolar que viveu na sua infância. O que era para ser uma decisão importante pelo fim da segregação racial, trouxe alguns ganhos, mas também, outros problemas, já que na escola “integrada” somente se falava da cultura, da história e dos valores dos brancos.
Ora, desse jeito, convenhamos que a segregação continua, só que “disfarçada”, porque estamos falando do “perigo da história única” citado por Chimamanda Adichie. Ou ainda, estamos falando do pacto narcísico da branquitude cunhado por Cida Bento, no qual a única imagem vista e buscada no “espelho do lago” é a imagem da branquitude, com seus valores, sonhos, perspectivas, cultura e interesses. O que quero dizer é que não acredito ser suficiente ficar falando para minhas turmas que a sociedade é racista, que o currículo tem uma abordagem racista ou que devemos ser antirracistas, sem examinar profundamente o que esse propósito quer dizer.
Ser antirracista não deve se restringir ao combate das práticas racistas, como muitos pensam. Acredito que “o ser antirracista” tem que vir antes de qualquer prática que se entenda racista, ou da existência de qualquer desigualdade, subalternidade ou hierarquia racial, epistemológica ou cultural. Como fazer isso em contexto escolar? Apresentando cotidiana e sistematicamente, e não apenas no 13 de maio ou 20 de novembro, protagonistas negros, intelectuais e cientistas pretos, perspectivas, culturas, referências e histórias normalmente não apresentadas pela escola.
Bebendo, então, na fonte do Adinkra Sankofa, no último semestre, junto com um professor de história do campus, propus um trabalho interdisciplinar (Inglês e História), que envolveu a criação de histórias em quadrinhos bilíngues. Nesses quadrinhos, aconteceria um encontro e diálogo entre alguma personalidade estudada nas aulas de inglês (e, portanto, uma pessoa estrangeira) e alguma personalidade estudada nas aulas de história (e, por conseguinte, brasileira). No caso dos personagens estrangeiros, deveriam ser cientistas e inventores de tecnologias negros, que são importantes referências da história, mas pouco conhecidos, como Lewis Howard Latimer, Granvile T. Woods, Gladys West, Annie Easley, Garret Morgan, Patricia Bath George Robert Carruthers, Mae Jemison e tantos outros. Ao final do projeto, tivemos quadrinhos bilíngues e a oportunidade des estudantes conhecerem as histórias de personalidades até então ignoradas e apresentarem seus quadrinhos e reflexões na Semana Acadêmica do campus.
É fato que essa iniciativa, assim como outras já em desenvolvimento, são pontuais e não desmantelam a estrutura racista da sociedade. Estou ciente de que a luta antirracista não finda com os seminários que as turmas apresentam. Afinal, no presente ano em que a Lei 10.639/03 completa 20 anos de existência ainda precisei justificar a inserção de conteúdos e referências afrodiaspóricas nas aulas de inglês. No entanto, acredito que a apresentação e discussão sobre corpos e intelectualidades negras protagonizando as atividades das aulas de língua inglesa seja um caminho para dar materialidade à luta antirracista, no contexto escolar.
Como Luiz Rufino defende o projeto colonial não venceu, porque a resistência, a resiliência e a subversão estão presentes na história e no cotidiano das pessoas. O que talvez falte seja maior visibilidade. E para tal, como Rufino sugere, vou pelas frestas e cruzos pouco imagináveis. De dentro da instituição e do sistema e como professora branca, critico o racismo epistêmico e o pacto narcísico da branquitude, destacando intelectualidades que o currículo branco apaga. Por meio de quadrinhos bilíngues, com personalidades da história da República Brasileira e intelectualidades negras da evolução científico-tecnológica, jovens estudantes são estimulados a pesquisar e escrever sobre essas personalidades, que passam a ser suas referências negras e modelos a serem seguidos. Eu sei que esse é só o primeiro passo dessa caminhada, mas já é possível identificar alguns importantes ganhos nas vozes, questionamentos e reflexões dos estudantes. E isso me motiva ainda mais. Criticando a perspectiva monocultural e subvertendo a ordem colonial racista vigente, o ensino e a luta antirracista ganham materialidade com estudantes do ensino médio, no miudinho do cotidiano da sala de aula.
E você? Já tinha ouvido falar desses intelectuais e cientistas? Dá um google nesses nomes para conhecer mais sobre esses inventores e se junta com a gente nessa luta. Afinal, como diz Emicida, é tudo pra ontem.
Maria Aparecida
Mestre e Doutora em Linguística Aplicada (UFRJ) e professora do IFRJ, campus Arraial do Cabo. Leciona Inglês para Fins Específicos em cursos de nível médio integrado (de Informática e de Meio Ambiente), e também a atua na Pós Graduação de Tecnologias Digitais Aplicadas ao Ensino (IFRJ campus Arraial do Cabo) e na Pós Graduação em Práticas de Letramento (IFRJ campus São João de Meriti). Atualmente, participa de dois Projetos de Pesquisa PRINT e PLELL. Os interesses de pesquisa e extensão envolvem práticas de letramentos, letramento racial crítico, pacto narcísico da branquitude, letramento crítico de gênero, interseccionalidades, afrofuturismo e racismo algorítmico.