Repensando o legado dos museus de ciência
Por Yasmin Tosta
A ciência é parte essencial do nosso dia a dia – desde o alimento em nossos pratos até os celulares em nossas mãos. Portanto, é mais do que necessário que qualquer pessoa tenha acesso a ambientes de aprendizagem da ciência, dentre eles, os museus. Além de entreter, o principal objetivo dessas instituições é educar, mas infelizmente o conhecimento científico exibido por elas está apenas disponível a uma parte da população. A outra parte, normalmente composta por públicos marginalizados por sua classe, raça, gênero e escolaridade, acaba sendo excluída. O que poucos sabem, ou ao menos desconfiam, é o porquê de isso acontecer.
Museus de ciência possuem um histórico um tanto sombrio. Explico: eles são um produto da colonização, desenvolvendo-se a partir de Gabinetes de Curiosidades (Figura 1). Apesar do nome, tais Gabinetes não eram como móveis, mas sim salas nas quais nobres e ricos comerciantes guardavam suas coleções de objetos, frequentemente classificados como estranhos e incomuns, trazidos ou roubados de terras estrangeiras e “exóticas”. Deste modo, a história da ciência como a demonstrada em museus, principalmente nos de história natural, é inseparável da história do colonialismo europeu.

Figura 1- Gabinete de Curiosidades de Ole Worm, historiador natural dinamarquês (‘Museum Wormianum’)
Agora você pode estar se perguntando: no que isso afeta a ciência nos museus, e talvez mais importante, as pessoas que os visitam? Bom, o processo de colonização envolveu o controle político e econômico de um povo sobre outro e foi marcado pelo desequilíbrio de poder. Isso afetou a forma como as sociedades e os museus foram construídos, criando desigualdades estruturais e preconceitos que ainda existem atualmente. Estas desigualdades perduram, pois estão enraizadas nos museus e nas pessoas, influenciando a forma como a ciência é comunicada e ensinada. Um exemplo prático: o Museu Americano de História Natural exibiu por muito tempo uma imagem que demonstrava a evolução da espécie humana (Figura 2). Na imagem, entitulada “Do peixe ao homem”, um indígena australiano estava uma escala abaixo no processo evolutivo, logo atrás de um homem branco.
Figura 2 – “Nossos rostos do peixe ao homem”. Créditos: AMNH
Então pense: como um negro ou indígena se sentiria ao se deparar essa imagem? Esses e outros tipos de representação deturpadas, racistas e/ou negativas da ciência são apenas uma das consequências remanescentes do colonialismo. Isto tem um efeito sobre a acessibilidade, diversidade e inclusão em museus como espaços de ensino de ciência, levando a uma segregação no que diz respeito aos visitantes. E isto vem sendo cada vez mais documentado: estudos feitos em países como Inglaterra e Estados Unidos mostram que não-visitantes negros e imigrantes sentem que museus não foram feitos para eles. O conteúdo quase sempre foca no avanço científico alcançado por homens brancos europeus, o ambiente não é acolhedor, a linguagem utilizada não é compreensível – entre tantos outros motivos.
Dessa forma, a descolonização é mais do que necessária para remover este desequilíbrio de poder colonial que causa desigualdades nos museus de ciência. Em termos simples, descolonizar é remover, contextualizar ou reparar representações preconceituosas, negativas ou racistas. Esse processo pode incluir também, quando possível e prático, a repatriação ou restituição de artefatos aos países de origem. Como consequência, a realidade da descolonização significaria a destruição física dos museus e de tudo o que eles representam. Como não é possivel nem provável que isso aconteça, o que pode ser feito para tentar mitigar o legado colonial tão presente nos museus?
O primeiro passo para muitos museus de ciência é averiguar a história e origem por trás de suas coleções – tornando suas descobertas acessíveis aos visitantes. Além disso, a linguagem utilizada em textos também deve ser checada para que termos ofensivos ou estereotipados sejam substituídos. Um terceiro item, quiçá o mais importante, é trazer para o centro das discussões aqueles que mais são afetados pelas desigualdades estruturais. Isso significa tanto a contratação de pessoas pretas e indígenas, quanto a sua participação, em rodas de conversa e preparação de exposições, por exemplo (com a devida remuneração, é claro). Estes são alguns dos objetivos práticos, mas a descolonização vai muito além. Significa também que museus devem refletir criticamente sobre suas práticas, aceitar seus privilégios, com uma outra mentalidade, outro pensar. A partir daí, a mudança e a descolonização das práticas museais começam a fazer sentido.
Apesar dos esforços em museus de ciência ao redor do mundo, o que percebemos é que sua total descolonização é um processo longo e desafiante, por ser praticamente intangível e indefinível. Em um país onde a maior parte dos visitantes de museus possui um alto nível de escolaridade e renda, ainda temos muitas barreiras a serem transpostas e um longo caminho rumo a democratização e acesso à ciência e à cultura.
Yasmin Tosta
Bióloga, mestre em Educação e Divulgação de Ciências pela Universidade de Utrecht na Holanda. Atualmente atua como divulgadora científica para o Centro Aeroespacial Alemão (DLR).
Literatura sugerida:
Cazelli, S., Marandino, M., & Studart, D. (2003). Educação e Comunicação em Museus de Ciência: Aspectos históricos, pesquisa e prática. Em “Educação e Museu: A Construção Social do Caráter Educativo dos Museus de Ciência” (pp. 83–106). Access Editora.
Das, S. and Lowe, M., 2018. Nature Read in Black and White: decolonial approaches to interpreting natural history collections. Journal of Natural Science Collections, 6, pp.4-14.
Dawson E. “Not Designed for Us”: How Science Museums and Science Centers Socially Exclude Low-Income, Minority Ethnic Groups. Sci Educ. 2014 Nov;98(6):981-1008. doi: 10.1002/sce.21133.
Kauano, R. V., & Marandino, M. (2022). Paulo Freire na Educação em Ciências Naturais: Tendências e Articulações com a Alfabetização Científica e o Movimento CTSA. Revista Brasileira De Pesquisa Em Educação Em Ciências, e35064, 1–28. https://doi.org/10.28976/1984-2686rbpec2022u521548