Macabéas: das narrativas ao grito
Por Bárbara Oliveira Rosa
“Felicidade? Nunca vi palavra mais doida,
inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes”
(Clarice Lispector, 1998 [1977], p. 12)
O propósito principal da pesquisa é compreender a solidão das mulheres nordestinas que vivem no município do Rio de Janeiro a partir da personagem Macabéa, do livro A hora da estrela de Clarice Lispector.
Para falarmos sobre as narrativas das mulheres nordestinas migrantes, precisamos abordar sobre a negação de sua identidade, o não pertencimento, a solidão e o preconceito de gênero, raça e classe social. Para a construção da identidade da personagem Macabéa, precisamos pensar na relação da mulher nordestina migrante com a metrópole. Vivemos em uma sociedade em que se escolhem os estilos de vida e isto passa a compor a identidade. Porém, as pessoas pobres, negras, migrantes são as que menos têm oportunidade de escolher seu estilo de vida.
Os estilos de vida dos ricos, principalmente dos pertencentes à região Sudeste, são almejados e mostrados pela mídia como o correto, o símbolo de sucesso. Os meios de comunicação vêm massificando o consumo, impondo padrões pré-estabelecidos de comportamento, de gostos, de estilo de vida, mostrando o que é bom, o que é normal, o que deve ser seguido e copiado. Assim, as nordestinas migrantes que vivem em grandes metrópoles têm a sua identidade negada, possuem uma identidade atribuída, composta por preceitos xenofóbicos que as estereotipam, humilham, desumanizam e estigmatizam.
As mulheres nordestinas migrantes trazem, em suas histórias, resquícios do patriarcado e vivências do machismo, porque são mulheres. Essas também sofrem com o racismo, por serem descendentes de pessoas negras, e não dos brancos europeus. Outro preconceito é a xenofobia contra as pessoas nordestinas, por isso elas acabam ocupando um espaço de privações econômicas e simbólicas, marcado pelas injustiças sociais.
Os nordestinos encontraram um ambiente bem menos favorável à ascensão social que os imigrantes europeus que chegaram ao país no início do século XX. Os imigrantes europeus nas metrópoles ocuparam os cargos mais qualificados, restando aos nordestinos as profissões subalternas e não qualificadas. Junto a essa questão, restou a esses ocupar as áreas pobres e de periferia dos centros urbanos.
De tal modo, há uma hierarquia social na nossa sociedade que concede privilégios a um grupo sobre outros. As pessoas nordestinas que sofrem xenofobia são atingidas em diferentes níveis de sofrimento, que interferem na totalidade de suas vidas, em sua subjetividade e sociabilidade. O preconceito nega aquilo que constitui um dos elementos para a constituição de sua identidade como sujeito. Apaga-se a memória, a cultura e o direito de ser da nordestina, a classificam como “outro”, como não pertencente.
A personagem Macabéa é uma personagem feminina que foi criada por um homem, o narrador Rodrigo S.M., que escreve a partir de sua percepção, de forma violenta, sem ter empatia pela protagonista. Já nesse começo, percebemos que a história é narrada por um homem carioca olhando para vida de uma nordestina. Clarice Lispector faz uma crítica social que passa por dois pontos, o machismo e a invalidação da vida nordestina. Nesse sentido, é preciso desconfiar da história que estamos lendo, porque ela está repleta de preconceitos e de uma percepção restrita desse narrador.
A vida de Macabéa é contada por meio de silêncios, sua história é pobre, a personagem vive a margem, sendo ignorada. Percebemos a invisibilidade dessa migrante na cidade grande, uma forasteira, que nem merece o olhar, sua presença é como se não existisse. Apesar de aspectos individuais na construção de sua personalidade, existem marcadores coletivos, como o próprio narrador diz, essa realidade não se restringe a uma, mas há muitas Macabéas.
A personagem Macabéa se constrói no sentimento de não pertencimento, alheia à cidade do Rio de Janeiro: “[…] limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela” (LISPECTOR, 1998 [1977], p. 15). A protagonista não tem lugar, o espaço ocupado por ela é nenhum. É nessa hostil metrópole que ela vai sentir solidão: “[…] todo mundo é um pouco triste e um pouco só. A nordestina se perdia na multidão. Na praça Mauá onde tomava o ônibus fazia frio e nenhum agasalho havia contra o vento” (LISPECTOR, 1998 [1977], p. 40). Essa passagem simboliza a personagem desprotegida, sem nenhum agasalho, perdida na multidão. Já em outra passagem, também percebemos o sofrimento da migrante na cidade do Rio de Janeiro: “Fixava, só por fixar, o capim. Capim na grande Cidade do Rio de Janeiro. À toa. Quem sabe se Macabéa já teria alguma vez sentido que também ela era à-toa na cidade inconquistável” (LISPECTOR, 1998 [1997], p. 81).
Por fim, a personagem morre na sarjeta, em beco escuro, sem luz, reforçando sua invisibilidade e marginalização. Ao longo de toda narrativa, Macabéa é construída como solitária, sem descendentes ou ascendentes, sem amigos, parceiros ou parceiras afetivas-sexuais. Uma solidão, por muitas vezes, destinada às mulheres migrantes e negras. A migração deve ser interpretada muito além de uma escolha do indivíduo de sair de seu território em busca de melhores condições de vida. Na verdade, expressa particularidades de classe, gênero e raça que estão inscritos no processo sócio-histórico brasileiro.
Bárbara Oliveira Rosa.
Graduada, mestre e doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Graduada em Filosofia pela Universidade de Franca – UNIFRAN. Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente, pós-doutoranda em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
REFERÊNCIA
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 (1977).