O que nos torna humanos? Reflexões acerca da relação homem-natureza
Por Bernardo de La Vega Vinolo
As sociedades modernas ocidentais são pautadas em valores que promovem a cisão/separação entre Homem e natureza, corpo e natureza, cultura e espírito. Esse discurso tem como princípio central o próprio dualismo – uma coisa diferente/fora da outra, a partir do qual se desenvolve a busca incessante de nós, humanos, pela busca da nossa identidade e pelo controle da natureza e dos meios de produção.
Para exemplificar como funciona a dualidade, podemos pensar em como os filmes de super-heróis funcionam: há sempre o lado do bem e do mal, em um cenário no qual ambos estão em constante conflito e evolução. Um não vive sem o outro, como se a razão da existência de um precisasse da atuação do outro. E, mais importante que isso: quase sempre o bem e o mal são claramente distinguíveis.
O modelo de construção da identidade humana baseado na dualidade nos encaminhou para a formação de um abismo entre nossa identidade construída e o mundo fora de nós. Isto porque, além de sermos “mamíferos primatas, da família dos hominídeos, do gênero homo, da espécie sapiens”, somos também linguagem, cultura, tecnologia, consciência e subjetividade. Não uma coisa ou outra, mas sim algo único: todo ser humano é a junção de sua natureza biológica e cultural/tecnológica.
A crise da relação homem-natureza é resultante de um processo histórico no qual o Homem não exercita a capacidade de identificar sua animalidade, seu vínculo e semelhanças com o natural, e se observa como um ser cultural e tecnológico. De maneira conflitante, a humanidade passou a considerar a natureza como aquilo que nos minimiza, e não o que nos constitui ou fundamenta. Não coincidentemente, quando utilizamos palavras como “selvagem”, “primitivo” e “animalesco” é, de modo geral, com uma conotação pejorativa – basta lembrar em como os povos indígenas foram, e ainda são, vistos por boa parte da humanidade.
Estamos a todo tempo modificando a natureza interna e externa, seja para fins estéticos, medicinais, tecnológicos ou econômicos, para nos distanciar da nossa forma mais primitiva. Além disso, buscamos nos diferenciar dos que chamamos de seres “irracionais” para embasar nossa superioridade biológica frente aos demais seres vivos: capacidade de raciocínio, cognição, presença de cultura, entre outros. Precisamos ser diferentes. Precisamos ser o centro da criação e da evolução biológica.
A busca pelo domínio e a alteração do que acredita-se ser nosso por direito nato, apoiado por preceitos religiosos, filosóficos e culturais, é presente no desenvolvimento econômico das civilizações ocidentais e até mesmo na produção e aplicação do conhecimento. Afinal, quantas vezes lhe foi ensinado, de modo direto ou indireto, que a natureza é puramente uma fonte de recursos destinados a atender as necessidades humanas? E que primitivo é sinônimo de atraso?
Esse conflito é visível nas paisagens onde o Homem se faz presente, em que a natureza, em sua forma de expressão mais livre, não combina com o cenário. Os rios são poluídos e canalizados, os animais silvestres cercados em fragmentos florestais, a vegetação é suprimida. Um exercício prático, para refletir: quando quer estar em contato com a natureza, para onde você vai? Para um parque ou um ambiente rural? Se, para estar com a natureza, você sai de onde habita, como poderia definir o local em que vive? Afinal, o que é natureza?
As paisagens humanas revelam a devastação ambiental estabelecida como pré-requisito para o desenvolvimento das sociedades modernas, sendo marcadas pela ausência dos elementos naturais para fins econômicos ou de “autopreservação”. Sob esta ótica, não é levado em consideração, por exemplo, o valor intrínseco e o direito à vida de uma espécie, independentemente de seu potencial uso para a sociedade.
Esta problemática traduz uma crise além da destruição da natureza. Ela expõe uma crise no modo de vida das sociedades modernas voltado essencialmente para fins econômicos e evidenciada pela dificuldade em promover, simultaneamente, o desenvolvimento econômico e social coletivo e a preservação ambiental. Até porque, essencialmente, toda crise ambiental também é social, pois os benefícios e os prejuízos deste modelo não são distribuídos igualmente para todos. Há aqueles que possuem maior acesso a serviços e que usufruem das benesses da modernidade, e aqueles que permanecem marginais ao desenvolvimento socioeconômico. A estes últimos, damos o nome de minorias sociais, grupos historicamente discriminados sem qualquer embasamento biológico, lógico ou racional.
Entretanto, há esperança de mudança. Depois de ter muito destruído, o ser humano também pode começar a reconstruir. Partindo de uma concepção segregada para uma integrada com a natureza, podemos voltar a nos reconhecer como parte de um planeta único, de uma expressão de vida única, e de uma sociedade global única. Afinal, o que acontece em qualquer parte do mundo nos afeta de modo direto ou indireto, em menor ou maior grau. Vivemos em um sistema fechado: não existe dentro ou fora, eu e o outro, o mais ou menos evoluído. Partimos do mesmo espaço-tempo, e assim seguiremos.
Não existe a dualidade natural. Ela é, intrinsecamente, artificial e segregadora, tanto em uma perspectiva natural, quanto social e racial. Somos uma natureza só. Cabe a nós nos questionarmos e agirmos em prol dessa integração.
Já parou para pensar no que te faz humano?
Bernardo de La Vega Vinolo
Analista de Arte, Ciência e Tecnologia no Sesc RJ
Mestre em Ecoturismo e Conservação na Unirio
Bacharel em Ciências Biológicas modalidade Zoologia na UFRJ
Crédito da foto: Pexels / Migaj
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