Pequenos inventores

Artigo Cultura Maker 3

Pequenos inventores: Cultura Maker e a produção de conhecimentos de crianças no Sesc Madureira

Por Adriano Silva da Rocha

Resumo:

Esse trabalho pretende apresentar alguns resultados acerca dos projetos ligados à cultura maker realizados no Sesc Madureira, bem como, analisar e  compartilhar possíveis contribuições para o processo de aprendizagem e a produção de conhecimentos das crianças envolvidas nas atividades. Como a cultura maker pode contribuir para educação das crianças? Em formato de oficinas, com atividades de incentivo à criatividade, com utilização de materiais low tech e reutilizável, buscamos fomentar o potencial criativo das crianças, o trabalho em equipe, solidariedade, empatia e autonomia. Deslocando as crianças de consumidoras a produtoras de “coisas”, de arte e tecnologias. Frente à revolução tecnológica, a cultura maker se apresenta como uma possibilidade fundamental e inovadora para os processos de ensino-aprendizagem, deslocando e engajando as crianças para o centro da construção de saberes, aprendendo fazendo, conforme proposição teórica de Paulo Freire (1970;1992), Paulo Blikstein (2008) e Seymour Papert (2008;2011).

 

Os pressupostos da nossa ação:

Esse trabalho pretende apresentar algumas das iniciativas socioeducativas relacionadas à tecnologia, do Sesc RJ – Serviço Social do Comércio, na unidade localizada no coração do subúrbio carioca, em Madureira, na cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, é necessário voltarmos ao tempo e analisarmos o surgimento do Serviço Social do Comércio em 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial.

Em meio às incertezas sociais oriundas da guerra, com o objetivo de promover alguma esperança de reconstrução do desenvolvimento nacional. Um grupo de empresários (do comércio, da indústria e agricultura) se reuniu na cidade de Teresópolis para debater os caminhos para reconstrução da sociedade brasileira frente aos desafios do pós-guerra. Nesse encontro as autoridades discutiram com o Estado brasileiro, não somente os caminhos e os desafios para o desenvolvimento econômico da época, mas, também, foi discutido como o empresariado brasileiro poderia contribuir para a promoção de políticas em atendimento ao bem-estar social, por meio da assistência social e da qualificação dos trabalhadores. Surgia, então, a Carta da Paz Social, um documento que norteia as ações do SESC. Através dele podemos perceber uma nova consciência empresarial: os líderes empresariais defenderam a adoção de medidas concretas em atendimento ao bem-estar social e da melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores do comércio, de suas famílias e, por extensão, da sociedade brasileira:

“… com o objetivo de atender às necessidades sociais urgentes e de propiciar aos trabalhadores do campo e da cidade maior soma de bem-estar e igualdade de oportunidades, propõem-se os empregadores a criar um Fundo Social a ser aplicado em obras e serviços que beneficiem os empregados de todas as categorias, e em assistência social em geral, repartindo com os institutos existentes as atribuições assistenciais e de melhoramento físico e cultural da população. O objetivo do Fundo Social é promover a execução de medidas que, não só melhorem continuamente o nível de vida dos empregados, mas lhe facilitem os meios para seu aperfeiçoamento cultural e profissional.” (Sesc, Carta da Paz Social, p. 13, 1946).

O Sesc completa, este ano, 75 anos de atuação no cenário brasileiro, oportunizando o potencial criativo dos brasileiros por meio do acesso à programação de cultura, educação, esporte, lazer, assistência e saúde. São dezenas de unidades espalhadas pelo território brasileiro, atendendo à diversidade de sua população. 

No Rio de Janeiro, as ações do Sesc estão distribuídas entre as 22 unidades, chegando a lugares que o poder público não chega com efetividade em suas políticas sociais, assim como ocorre no cenário nacional, é o caso da unidade localizada no bairro de Madureira, onde esse trabalho foi desenvolvido. É  situado no subúrbio carioca, zona norte da cidade:

 

Artigo Cultura Maker
Figura 1: Mapa do bairro de Madureira

 

Madureira por estar localizada na zona norte da cidade, apresenta indicadores sociais medianos. É um bairro que cresceu em meio a um comércio popular e à boêmia carioca. Apresenta fortes influências das culturas africana e afro-brasileira, sedia três escolas de samba, berço do charme e do jongo. Ao caminhar pelas ruas, podemos perceber as manifestações das religiões de matriz africana, bem como, as expressões da população e comunidade negra, constituindo-se, assim, como um ponto de encontro e de convivência dessa população.

Como sabemos, territórios que não se localizam entre o eixo centro-sul, sofrem com ausência de políticas públicas. Na verdade, o Estado só se faz presente através da força policial. No âmbito das políticas públicas, levando em consideração a configuração do bairro de Madureira, não há políticas de valorização da cultura e identidade local, bem como, políticas que impulsionem o bem-estar social dos moradores e aqueles que transitam pelo bairro. É a partir desse vácuo que o Sesc Madureira busca contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população de seu entorno. Por meio da oferta de programações inovadoras que valorizam a bagagem cultural dos usuários e, ao mesmo tempo, ampliam sua visão de mundo.

O programa Educação do Sesc tem por desafio promover mudanças que favoreçam o crescimento pessoal e social, se concretizando por meio de ações e atividades de educação não formal. O princípio fundamental da ação educativa é reconhecer e valorizar crianças, jovens, adultos e idosos como sujeitos de conhecimento. Aqueles que pensam, elaboram, realizam, repensam e reconstroem. Dessa forma, entendemos a educação como um processo contínuo e dinâmico, que estabelece relações com a realidade em vistas à transformação social, conforme nos ensinou o grande educador Paulo Freire.

 

Educação em ciências e humanidades no Sesc:

As atividades em educação são destinadas a proporcionar a compreensão e a ampliação de conhecimentos: visões de mundo e formas de pensamento, explorando, difundindo e popularizando conteúdos das ciências e humanidades em suas relações com a cultura e sociedade.

A ciência e tecnologia, assim como a arte, impactam na formação ética no desenvolvimento humano e na reorganização dos valores de uma sociedade. Com a revolução da informação surgem diferentes possibilidades  de nos relacionarmos com o outro e com o mundo. E com cenários da educação, da produção e consumo, da produção intelectual, das realidades locais, tão profundamente transformados. Nesse sentido, uma atuação reflexiva, contextualizada historicamente, sobre o pensamento da ciência e a utilização das atuais tecnologias são pilares referenciais para planejamento de nossas ações. Consideramos que esse panorama reinventa novos olhares sobre o mundo, agora mais complexo em suas redes, compartilhado e horizontal. A ideia é produzir processos socioeducativos e culturais, criando estratégias para promover e incentivar a reflexão. Além da difusão do conhecimento científico, estabelecendo ligações entre as ciências e as diversas linguagens da  arte, entre as ciências e a cultura, produzindo novos conceitos de criação e conhecimento.

 

Tecnologias como direito ao conhecimento: por uma educação emancipatória:

A revolução tecnológica que aconteceu nos últimos anos tem impactado diretamente nossas relações sociais e a maneira que se deve estar no mundo. Toda esta revolução tem promovido deslocamentos e exigindo uma educação que dialogue e instrumentalize as pessoas com todo este aparato e inovação tecnológica, sob pena de exclusão social daqueles que não acompanham este processo. O desafio do processo de aprendizagem, nos dias atuais, é tornar-se mais significativo, promovendo conexões com o mundo, por meio de adoção de pedagogias progressistas e alternativas, que buscam incentivar o protagonismo dos aprendizes na resolução de problemas reais, abolindo estruturas de poder tradicionais e contribuir para o empoderamento das pessoas para que elas tenham controle do seu processo de aprendizagem. Para BLIKSTEIN (2008) “ter em mãos múltiplas tecnologias aumenta e torna possíveis empreendimentos inerentemente humanizadores: criação, expressão possíveis e interação”.

A educação como um processo, não é o fim em si mesmo, ela precisa sofrer atualizações filosófica e metodológica positiva para o seu aprimoramento. O incremento de tecnologias de comunicação e informação no contexto da educação tem como objetivo promover a diversidade cultural e a quebra do paradigma da cultura de massa. Contribui para a desmistificação de estigmas históricos entre as diversas culturas, através do estreitamento de distâncias, entre diversas formas de expressões culturais presentes no planeta, beneficiando a interação entre ambas, almejando a conservação da identidade cultural, promovendo tanto a inclusão digital quanto a social.

A educação em Paulo Freire (1970) torna-se um instrumento essencial no processo de transformação da sociedade por ser possível através dela politizar o indivíduo, permitindo-lhe apropriar-se da realidade, inserir-se nela, tornar-se sujeito de sua própria história e atuar consciente no mundo. A educação envolve um processo de desvelamento da realidade que de acordo com Freire evidencia uma de suas tarefas essenciais que é a conscientização, ou seja, é o processo educativo que permite um vislumbrar de uma proposta de  mudança social através da decodificação do mundo e da inserção nele. BLIKSTEIN (2008) acredita que a proposta de Paulo Freire acerca da emancipação do indivíduo por meio da alfabetização textual, o mesmo pode ocorrer com crianças, ao dar oportunidade a elas a alfabetização tecnológica e computacional. Isso possibilita que os indivíduos criem dispositivos, sistemas  ou soluções utilizando conhecimento das áreas da ciência e tecnologia. Para o autor, oferecer atividades com utilização de tecnologias pode sim contribuir para o processo de empoderamento e emancipação dos sujeitos.

 

Cultura maker: um novo paradigma de educação? 

“… as crianças farão melhor descobrindo (“pescando”) por si mesmas o conhecimento específico de que precisam; a educação organizada ou informal poderá ajudar mais se certificar-se de que elas estarão sendo apoiadas moral, psicológica, material e intelectualmente em seus esforços. O tipo de conhecimento que as crianças mais precisam e o que as ajudará a obter mais  conhecimento.” (PAPERT, p.135, 2008)

O ato de ensinar exige respeito à autonomia do ser educado. O educador que desrespeita a curiosidade do aluno está infringindo os princípios fundamentalmente éticos da existência, afogando a liberdade do educando e tirando seu direito de estar sendo curioso e inquieto. (FREIRE, 1996, p.35).

Neste sentido, a cultura maker proporciona trabalhar esta autonomia, pois fazendo uso dessa cultura é possível trabalhar com a aplicação dos conhecimentos, utilizando a prática, partindo de uma situação ou desafio, de uma pergunta, levando o aluno a solucionar, criar e testar; desenvolvendo assim a criatividade e o senso crítico.

 

Os projetos maker do Sesc Madureira:

O resultado deste trabalho é de caráter qualitativo através de uma abordagem participante. Seu objetivo é contribuir para formação do senso crítico e transformador das crianças participantes das nossas oficinas ligadas à cultura maker, sendo a participação desses sujeitos seu principal pilar metodológico. Este método de pesquisa caracteriza-se pela interação entre pesquisadores e membros das situações investigadas, ou seja, as crianças passaram a ser sujeito e deixam de ser o objeto da pesquisa.

Ao longo do primeiro semestre de 2019 foi realizado o projeto ACT Produções Criativas para crianças usuárias da Unidade Sesc Madureira. Este projeto a partir do uso de ferramentas digitais e não digitais, integradas à educação e à cultura do “faça você mesmo” tem em sua base a filosofia do movimento maker: inclusiva, ecológica e inovadora, e que propõe adaptar, improvisar e encontrar soluções cotidianas simples e criativas. A partir desta ideia aconteceu a atividade ATELIÊ MAKER: OFICINAS DE CRIAR COISAS que tinha como objetivo aproximar e sensibilizar as crianças participantes da oficina aos conhecimentos da cultura maker e a possibilidade de criação com materiais acessíveis, low tech, ou baixa tecnologia. Uma bancada continha  vários objetos, materiais, artefatos e dispositivos eletrônicos para que cada participante, com a mediação  de um maker, pudesse criar, recriar, produzir, inventar, ressignificar objetos. A ideia era que cada criança participante fosse estimulada e desafiada a criar um protótipo, ao fim, nosso instrutor maker, estimulava os participantes a falar sobre o processo criativo e os ensinamentos absorvidos durante a participação na atividade.

 

Artigo Cultura Maker 1
Foto 1 : Ateliê Maker: Oficinas de Criar Coisas

 

Artigo Cultura Maker 2
Foto 2: Ateliê Maker: Oficinas de Criar Coisas

 

Ao iniciar as atividades os instrutores faziam uma breve explanação sobre o movimento da cultura maker. Apresentaram seus pressupostos filosóficos e seu potencial criativo frente ao desenvolvimento tecnológico e a lógica de compartilhamento horizontal de conhecimentos. Falavam para as crianças participantes que elas poderiam criar qualquer coisa a partir da curiosidade e o desenvolvimento de sua imaginação. E, a partir desta criação, ela poderia compartilhar ou presentear com seus aprendizados, sua família, seus amigos, etc.

Durante a realização das atividades muitas crianças, ao construírem seus protótipos, recuperavam ou atualizavam seus conhecimentos acerca dos conteúdos estudados em sala de aula, como por exemplo, quando utilizava a lâmpada de LED (diodo emissor de luz) com a bateria lítio, criando pequenos circuitos elétricos, empregando luz às suas criações. Foi fácil perceber que as crianças ressignificavam e construíam novos saberes, deslocando-se para o centro do saber.

 

Fotos 1 e 2: Ateliê Maker: Oficinas de criar coisas:

Ao longo do primeiro semestre cerca de 600 crianças foram atendidas por meio das oficinas.  Todas elas produziram seus protótipos e puderam levar para casa. Desta forma, foi dada uma contribuição para protagonismo  dessas crianças, no processo criativo e na obtenção e absorção de novos conhecimentos, elas aprenderam fazendo. Aprenderam que nem sempre é preciso ter acesso à alta tecnologia para produzir ou inventar alguma coisa. Aprenderam alguns conceitos da sustentabilidade, ressignificando objetos que seriam transformados em lixo. Assim, foram  protagonistas do seu desenvolvimento intelectual, por meio de atividades desafiadoras e estimulantes para a solução de problemas e que serão fundamentais para o futuro.

Atividades como estas, contribuem para o desenvolvimento do senso crítico, tomada de decisão, bem como, o trabalho em equipe, a autonomia e o estímulo à cooperação e à solidariedade. Quando uma criança se vê como corresponsável na resolução de uma problemática, a sua visão de mundo se modifica, o seu horizonte é ampliado. Ela se sente capaz e produz conhecimento, intervindo e transformando sua realidade, subvertendo a ordem social estabelecida.

 

Considerações finais:

Entendendo a tecnologia como meio para o estabelecimento de uma educação emancipadora, os projetos do Sesc Madureira ligados à cultura maker, têm contribuído para o processo socioeducativo das crianças que vêm participando dessas ações. O século XXI tem apresentado novos desafios juntamente com o desenvolvimento tecnológico. Saber decodificar e interagir de forma plena com todo esse arsenal tecnológico faz-se necessário para o exercício e expressão de nossa cidadania.

O protagonismo de pessoas comuns na produção de conhecimento e no desenvolvimento de novas tecnologias contribuem, também, para uma  equidade e harmonia social. Em última instância, diminui as distâncias entre os estratos sociais. E é exatamente neste sentido que as atividades educativas da  Unidade Madureira estão focadas.

 

Referências:

BLIKSTEIN, Paulo. Travels in Troy with Freire: Tecnology as an agente for emancipation. In: NOGUERA, Pedro; TORRES, Carlos Alberto (Ed.). Social justice education for teachers: Paulo Freire and the possible dream. Rotterdam: Sense, 2008.
BLIKSTEIN, Paulo. Digital fabrication and ‘making’ in education: the democratization of invention. Stanford: Stanford University, 2013. Disponível em: . Acesso em: julho, 2019.
BLINKSTEIN, Paulo. Educação mão na massa. São Paulo, USP – Universidade de São Paulo, setembro de 2016. Entrevista para o site porvir durante a Conferência FabLearn Brasil. Disponível em:http://porvir.org/especiais/maonamassa/?gclid=Cj0KCQjwnNvaBRCmARIsA OfZq-3osMD1faI72 ktI-caMXwySkVQsMnq3EBpDwHCJOg5Fa187ZpY- kk8aApqIEALw_wcB. Acesso em: julho, 2019.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 24ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
PAPERT. Seymour. A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática. Trad. Sandra Costa. Ed. Revista. Porto Alegre: Artmed, 2008.
SESC. Carta da Paz Social. Rio de Janeiro, 1946.

 

Crédito da foto do banner: Vlada Karpovich / Pexels

Saiba mais sobre o movimento da Cultura Maker aqui.

Fique por dentro das iniciativas do Sesc RJ clicando aqui e acompanhando nossas redes (YouTubeInstagram e Facebook). #SescRJEducação

© Copyright Portal da Educação Sesc RJ 2024 - Todos os direitos reservados | Serviço Social do Comércio – Rio de Janeiro