Blog Ciência – Todos merecem se emocionar no museu

Todos merecem se emocionar no museu: uma história de luta pela promoção da inclusão social 1

 

Todos merecem se emocionar no museu:
uma história de luta pela promoção da inclusão social

Por Marcelle Pita

Uma das minhas primeiras memórias de infância foi a ida ao zoológico do Rio de Janeiro. Eu devia ter uns 5 ou 6 anos e me lembro que foi uma verdadeira festa em família, fomos de trem até São Cristóvão, levamos lanches e passamos um dia diferente. Vimos os animais, andamos muito pelo parque e, no final, o dia foi coroado com as múmias e os milhões de exemplares de animais na visita ao Museu Nacional.

Os museus sempre foram lugares de muita alegria para mim, onde as descobertas se tornavam mais palpáveis, onde os olhos se iluminavam ao conhecer coisas novas. Sempre fui uma amante de museus, daquele tipo de pessoa que entra no museu mesmo sem saber sobre o que é a exposição.

E durante a faculdade, lá pelo ano de 2015, tive a oportunidade de ir para a Europa, onde pude conhecer museus incríveis que só via nas imagens dos livros escolares, as pinturas, esculturas, registros de um passado antigo, registros de civilizações anteriores a nossa.

Na Espanha, onde eu morei durante o intercâmbio, pude fazer um estágio no setor educativo de um dos jardins botânicos mais antigos do mundo, o Jardí Botanic de Valencia, onde participei de oficinas e cursos de férias com públicos diversos, e percebi ali que a educação era o que eu amava fazer.

Voltando para o Brasil, cursei a disciplina de Libras (Língua Brasileira de Sinais) e meus olhos se abriram para um mundo com o qual sempre tive contato, sempre interagi, mas nunca refleti sobre a importância do reconhecimento de sua luta: o mundo das pessoas com deficiência. Foi aí que descobri que a maioria das pessoas surdas eram nascidas em famílias ouvintes, ou seja, não conseguem se comunicar na maior parte do tempo com seus próprios cuidadores; aprendi também que existe um abismo causado por esse isolamento, que afeta as pessoas surdas simplesmente pela questão da comunicação e da informação que não chega.

Com isso, me aproximei de um mundo novo de possibilidades e novas descobertas, buscando entender as diferentes faces da nossa sociedade, e me peguei interessada em uma palavrinha que tem um poder inimaginável, a inclusão. Pensar que todos formamos a sociedade, mas que várias pessoas, por conta de suas características, estavam excluídas de vários espaços foi algo que me motivou a buscar mais e me move até hoje.

Quando percebi que não conhecia nenhuma pessoa surda nem cega no meu bairro, quando notei que nunca tinha parado para pensar que tantas pessoas utilizam cadeiras de rodas ou muletas para se movimentar, e que essas milhares de pessoas, com diversas deficiências, são invisíveis para a sociedade, eu ganhei um motivo para pesquisar e lutar pela educação de todos (todos, todas, todes, mas isso é uma conversa para outro dia).

Revisitando memórias percebi que era a única amiga na escola de uma menina que tinha, provavelmente, deficiência intelectual; que no intercâmbio tinha um aluno com paralisia e que participava ativamente das atividades no jardim botânico; que na minha família tinha um primo que utilizava cadeira de rodas; e que minha avó precisava agora utilizar um carrinho para locomoção. Percebi que, desde sempre, a inclusão era algo que estava ao meu redor, seja com pessoas que nasciam com essas características, ou que as adquiriam ao longo da vida. Assim, percebi que eu já abraçava essa causa antes mesmo de decidir investigar o tema.

Você sabia que cerca de 12,7 milhões de pessoas, 6,7% da população brasileira, apresentava alguma deficiência em 2010? E você sabia que 1,1% da população brasileira possuía deficiência auditiva no mesmo período[i]? Imaginem hoje, com o crescimento populacional em 12 anos, quais serão os números relativos às pessoas com deficiência no Brasil no Censo de 2022? E com números tão significativos da população, me espantava a ideia de que essas pessoas não estivessem em nosso convívio no cotidiano, e fui buscar entender o porquê.

Em 2018, comecei realmente a mergulhar nesse mundo, e escolhi como público-alvo da minha pesquisa os surdos usuários de Libras. Eu fazia curso de Libras desde 2017, e tinha grande interesse em entender e adentrar a comunidade surda, e foi com meu projeto do mestrado que resolvi dar esse passo.

Como os museus tinham grande papel nas minhas memórias e uma especialização em ensino de ciências havia me mostrado a importância da educação para além do espaço escolar, percebi que os museus podiam ser o alvo principal da minha pesquisa em inclusão. Nos artigos e livros, percebi que os atrasos educacionais eram muitos, por conta da exclusão que as pessoas com deficiência haviam passado durante a história da humanidade, e a cultura poderia ser uma ferramenta para promovermos o acesso à novas informações.

Você sabia que antigamente, os bebês eram mortos ou sacrificados se tivessem qualquer má formação ao nascer? E que em outro período, os bebês com deficiência eram isolados em conventos ou outras instituições que os mantinham longe de suas famílias? Acredito que muitos que me leem se lembrem da história do Corcunda de Notredame ou dos vários bobos da Corte, geralmente com má-formação física ou alguma deficiência intelectual que aparecem nos filmes, séries e desenhos em larga escala.

Por séculos, as essas crianças passaram a viver com suas famílias, mas ainda assim, isoladas do convívio social, escondidas, utilizadas como serviçais, sem acesso às notícias, sem acesso à escola, com pouco ou nenhum acesso à saúde. Esse passado cruel de exclusão afastou as pessoas com deficiência da construção da sociedade como hoje a conhecemos, as afastou do conhecimento científico, do posicionamento político, entre outras atuações, tornando-as invisíveis por muito tempo.

Mas a partir do esforço de grupos políticos dirigidos por pessoas com deficiência, isso vem mudando desde os anos 1970. Desde então, foram criadas leis para inserção no trabalho, na escola, na cultura… E hoje estamos tentando fazer valer essas leis, tornar possível que as instituições e as pessoas transformem essas leis em prática. Por isso, ao olhar para os museus de ciências, onde temos a interseção – a ponte – entre cultura, ciência e educação, buscamos a inclusão social e a oferta de ferramentas e recursos que facilitem o acesso de variados grupos aos espaços. Assim, estamos dando mais um passo nessa luta.

Por conta dessa exclusão histórica, há pouquíssimos dados a respeito da presença de pessoas com deficiência nos museus, assim como de diversos outros públicos, já que os museus foram criados como instituições para as elites da sociedade, o que vem sendo modificado nas últimas décadas. Um dos motores principais para essas mudanças no setor cultural foi a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, a Lei nº 13.146 de 2015, que coloca como necessidade para o crescimento do país em igualdade e diversidade, a promoção da inclusão nos mais variados setores[ii]. Por isso, quando pensamos na cultura brasileira, precisamos pensar em abrir as portas dos museus para esses variados públicos e, para isso, precisamos em primeiro lugar ouvi-los, para sabermos como os atendemos melhor.

Existem cerca de 45 museus de ciências no estado do Rio de Janeiro cadastrados no guia Centros e Museus de Ciência do Brasil 2015[iii], mas desses, apenas 17 museus aparecem no Guia de Museus e Centros de Ciências Acessíveis da América Latina e do Caribe[iv] com algum recurso de acessibilidade voltado às diversas deficiências existentes. Ainda que esses museus estejam em processo de tornarem suas exposições mais acessíveis há anos, a inclusão ainda está em desenvolvimento e precisa de cada vez mais ações das instituições para que todos os públicos sejam incluídos na cultura em geral.

Por esse motivo, na minha dissertação de mestrado[v], busquei dar voz à um grupo de surdos sobre as diferentes questões de acessibilidade dos museus que visitamos. Foram eles que apontaram as questões, discutiram os obstáculos e sugeriram mudanças que nós pudéssemos colocar em prática. O grupo de jovens que participou da minha pesquisa era de surdos profundos, que utilizavam a Libras como primeira língua, ou seja, a sua comunicação primária, a qual foram alfabetizados, era a língua de sinais, o que já se sabe que gera diferentes barreiras na comunicação geral. Eles visitaram comigo três espaços de ciência na cidade do Rio de Janeiro: o Museu Light de Energia, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e a exposição temporária Cidade Acessível do Museu da Vida.

Eles observaram que existia um esforço nas três instituições, mas que ainda havia poucas ações concretas e duradouras nos museus de ciências, e que isso poderia ser aprimorado, principalmente com a disponibilidade de recursos acessíveis como a presença diária do profissional intérprete de sinais nas instituições. Eles expuseram que a presença de um intérprete na instituição facilitaria o acesso, a qualquer momento, de uma pessoa surda no espaço, e demonstraria um esforço contínuo para a inclusão.
Além disso, os jovens mostraram que para além da presença de uma pessoa ouvinte como intermediária nas ações dos museus, era necessária a inclusão de profissionais surdos e com outras deficiências no cotidiano das instituições, para que assim eles fossem realmente incluídos em todos os processos. Todas essas percepções e opiniões foram apresentadas no artigo científico chamado Acessibilidade e museus de ciências: visitação de jovens surdos a três museus do Rio de Janeiro[vi].

A deficiência é uma forma diferente de vivenciar o mundo, e é claro que um surdo não terá as mesmas vivências de uma pessoa cega, ou de uma pessoa com deficiência intelectual, e assim por diante. Mas, para incluirmos nos museus esses grupos como público, precisamos pensar também que eles devem participar ativamente dessas instituições, e é por isso que, quando abracei essa questão, busquei formas de colocar as pessoas com deficiência no centro da discussão e em contato direto com as instituições.

E, para além do contato, busco entender como os museus e outros espaços de ciências já atendem a esses públicos, como vem sendo o cotidiano dos museus, e como eles pretendem melhorar a inclusão em seus espaços. Mostrar o que vem dando certo e como outras instituições podem seguir esse caminho para a inclusão se tornou meu objetivo de pesquisa durante o doutorado, que está em andamento.

Essa é uma luta que não termina nunca. Buscamos sempre a acessibilidade plena, aquela que permite que todas as pessoas, com todas as características e necessidades distintas, possam acessar e usufruir livremente dos espaços. Queremos que o mundo e os espaços sejam realmente para todos. Por isso, precisamos valorizar as mudanças pontuais e pequenas, os esforços individuais e coletivos, dia a dia, para que possamos continuar o processo de transformar os museus e outros espaços científico-culturais em lugares cada vez mais acessíveis e inclusivos para todos. E eu espero que esse esforço faça com que qualquer pessoa tenha as memórias felizes e emocionadas que eu carrego das minhas próprias visitas a museus.

Todos merecem se emocionar no museu: uma história de luta pela promoção da inclusão social

 

 

 

 

Marcelle Pita

Mestra em Ciências (UFRJ), especialista em Ensino de Ciências e Biologia (Colégio Pedro II) e licenciada em Ciências Biológicas (UFRJ). Atualmente é doutoranda em Ciências pela UFRJ, bolsista CNPq e atua como docente na Rede Municipal de Educação de Maricá.

 

Bibliografia:

[i] NOTA TÉCNICA SOBRE O CENSO 2010: https://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/metodologia/notas_tecnicas/nota_tecnica_2018_01_censo2010.pdf

[ii] BRASIL. LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015 – Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm

[iii] ALMEIDA. Centros e museus de ciências do Brasil 2015 http://abcmc.org.br/abcmc/wp-content/uploads/2020/09/Guia-Centros-e-Museus-2015-baixa-resolu%C3%A7%C3%A3o-divulga%C3%A7%C3%A3o.pdf

[iv] NORBERTO-ROCHA, J. et al. Guia de Museus e Centros de Ciências Acessíveis. 2017. https://grupomccac.org/wp-content/uploads/2017/12/GUIA-PT-Final_sem-audiodescri%C3%A7%C3%A3o.pdf

[v] CARMO, MPS. Experiências museais de sujeitos surdos em três espaços de ciência do Rio de Janeiro. 2021. https://www.researchgate.net/publication/349405344_Experiencias_museais_de_sujeitos_surdos_em_tres_espacos_de_ciencias_do_Rio_de_Janeiro

[vi] CARMO, MPS; MASSARANI, L. Acessibilidade e museus de ciências: visitação de jovens surdos a três museus do Rio de Janeiro. Ensaio – Pesquisa em Educação e Ciências, v. 24, 2022. https://www.scielo.br/j/epec/a/fTFJPWSwYxDmq53dqcTdrjh/?lang=pt

 

Blog Ciência - Todos merecem se emocionar no museu

© Copyright Portal da Educação Sesc RJ 2024 - Todos os direitos reservados | Serviço Social do Comércio – Rio de Janeiro